submarine
X

2022

lido, visto, vivido

 2022 foi um ano. Lembrar do primeiro dia do calendário, agora obsoleto, e do último, para mim, é como conectar dois fragmentos depois de uma ruptura; minha memória ainda não se organizou muito bem, então tudo pra mim parece que foi ontem ou uma vida atrás (ou ambos). Quando eu vejo minhas fotos ou leio meu diário de um ano atrás, sempre há algo de irrecuperável, que não importa o quanto eu tente entender ou até simular — aqueles olhos já não me pertencem. Andei pensando, é essa a sensação do fantasma quando vê seu túmulo aberto; a única diferença é que ele não precisa mais assinar documentos, mandar currículos ou comprar comida. Mortes em vida são... inconvenientes.
 Eu sinto que fiz muita coisa e que muita coisa mudou esse ano, e em comparação aos anos de pandemia, é verdade. Eu comecei a estudar (presencialmente). Eu saí de uma crise depressiva, o que me motivou a voltar a escrever com frequência e tentar recuperar o tempo perdido com meus projetos. Eu disse alguns adeus definitivos, e também fiz coisas novas. No geral, eu me sinto em algum lugar estranho entre a pessoa que eu era e a que eu estou me tornando — e me pergunto, no que eu vou me tornar? não, me pergunto quando eu vou me tornar? Talvez eu viva para sempre no meio da estrada.

 Essa é uma lista com alguns livros e filmes que li/vi em 2022 e que me marcaram. Decidi manter em cinco de cada e focar em obras de ficção. Se você, leitor, conhece alguma dessas obras, ou decidiu ler/ver depois de ver essa lista ou tem alguma recomendação, estou aberta para conversar!!

 leituras
 Orgulho e Preconceito (1813), de Jane Austen
 Esse foi o primeiro livro que eu li da Jane Austen. Ele conta a história da família Bennet, cuja mãe está tentando arranjar casamentos para suas filhas mais velhas, Jane e Elizabeth; ela vê uma oportunidade quando dois jovens solteiros e afortunados chegam na região, mas diversas intrigas entram no caminho dos casais. O livro é um romance de costumes, com comentários sobre a sociedade inglesa rural da época e uma trama de romance, amadurecimento e enganos.
 O livro tem uma das primeiras-frases mais famosas da língua inglesa e pelo menos cinco filmes (só vi um depois da leitura). De certa forma, eu já tinha uma imagem formada do que ia ser esse livro, mas ele me surpreendeu. A escrita da Austen é muito vívida e bem humorada, e ela consegue te inserir totalmente dentro do ambiente provinciano, com as descrições das paisagens e casas, dos personagens e das relações sociais entre eles, com toda a esfera doméstica e pessoal dessas interações. A Lizzy e o Sr. Darcy são dois personagens memoráveis e o romance e desenvolvimento deles é muito bonito. Também foi o primeiro livro que li esse ano.

 Ficciones (1944), de Jorge Luís Borges
 Eu já tinha lido contos soltos do Borges e uma antologia de literatura fantástica dele, mas ainda não tinha lido um livro inteiro (só) dele. Ficciones é um livro de contos, talvez o mais popular do Borges, que trata de diversos temas, como memória, realidade, verdade, ficção, labirintos, sistemas, conspirações. Foi o primeiro livro que eu peguei na biblioteca da minha faculdade, e ainda peguei o Aleph depois (que é igualmente excelente).
 Meus contos favoritos da primeira parte do livro foram "Tlon, Uqbar, Orbis Tertius" (um dos que eu já conhecia, mas que a releitura me fez interpretar e entender de outras formas; esse é um dos meus contos favoritos de tudo que eu já li, no geral), "A Loteria da Babilônia" e "Exame da Vida e Obra de Herbert Quain". Na segunda parte, gostei muito de "A Forma da Espada", "A Morte e a Bússola" e "Funes, o Memorioso". A escrita do Borges é muito versátil, com contos que se passam em diversas culturas, diferentes gêneros e uma metalinguagem muito bem construída. É uma leitura incrível.

 Moby Dick (1851), de Herman Melville
 Eu decidi ler esse livro depois de ter recebido uma indicação, e também por curiosidade depois de ler "Bartleby, o Escrivão" do Melville. É difícil definir esse livro; de certa forma, é a história da tripulação de um navio baleeiro, guiada pelo monomaníaco Capitão Ahab, em sua caça por Moby Dick, a indomável e quase-lendária baleia branca. Não está errado dizer isso, mas essa é uma descrição que cobre pouco do livro, que tem vários capítulos dedicados a explorações enciclopédicas sobre a anatomia, leis e história das baleias e da pesca, a estrutura dos barcos baleeiros e de toda uma sociedade que gira em torno dessa prática.
 O livro é narrado pelo Ismael, um tripulante em sua primeira viagem em um baleeiro. O livro tem muitas personagens e mistura vários gêneros: alguns capítulos são narrativos, alguns tem o formato de peças de teatro, outros são explicativos e enciclopédicos; em todos, o Melville é primoroso. É um livro que intercala momentos de drama e humor, que vai de ação/aventura a reflexões sobre a natureza humana e a política do século XIX. A figura da baleia é uma imagem e força muito misteriosa na história, que gera fascinação e obsessão. O final é muito marcante, como o fim de uma viagem.

 Monster (1994-2001), de Naoki Urusawa
 Eu comecei a ler esse mangá em uma fila de espera porque eu estava entediada, com internet e já tinha lido vários elogios sobre ele; no fim, eu acabei lendo os 162 capítulos em três dias, tentando não ler rápido demais. O mangá conta a história do Dr. Tenma, um neurocirurgião que decide salvar a vida de uma criança mesmo indo contra as ordens do hospital; anos depois, ele testemunha o garoto, agora adulto, cometer um assassinato, e decide ir atrás dele para "consertar" o próprio erro. É um mangá seinen de mistério e suspense.
 É uma história envolvente do primeiro ao último capítulo, e o ritmo é muito bem construído por todo o mangá. Ele tem uma trama bem complexa, com vários mistérios, personagens, histórias paralelas, reviravoltas e questões políticas, sociais e morais. Mesmo os personagens que aparecem por um capítulo são muito bem escritos. O Dr. Tenma e a Anna são personagens muito interessantes; e acredito que o Johan é um dos vilões mais íncriveis que eu já li. Ele não aparece muito diretamente, mas toda a história é, de certa forma, assombrada por ele, que é como um "fantasma". Eu provavelmente teria enlouquecido se tivesse que acompanhar esse mangá por sete anos.

 O Quarto de Giovanni (1956), de James Baldwin
 Esse foi um dos últimos livros que eu li em 2022. Eu já conhecia o James Baldwin por entrevistas dele, mas não tinha lido nada dele ainda, apesar de sempre ter tido curiosidade pela não-ficção dele. Esse livro conta a história de David, um americano que se muda para a França nos anos 40, e seu romance com Giovanni, um italiano que ele conheceu na viagem e que está prestes a ser executado. É uma obra de drama e tragédia.
 A escrita do Baldwin é bem intimista e fluída, com vários vaivéns temporais e fluxos de consciência; o livro é um pouco como uma conversa. A história é narrada pelo David, que vai da sua experiência desde a infância nos Estados Unidos, suas primeiras experiências amorosas e seus problemas familiares... até sua ida a França, sua relação com sua noiva e com Giovanni. Ele também mantém um mistério do que aconteceu (você só sabe que foi algo terrível, pela sentença de morte do Giovanni) até o último capítulo. Ele lida com questões de masculinidade, amor e repressão. É um livro triste e muito belo, e o Baldwin escreve com muita sensibilidade.

filmes

Withnail and I (1987), de Bruce Robinson
 Eu não lembro bem como eu encontrei esse filme, mas ele ficou muito tempo na minha mente. Ele se passa na Inglaterra do final dos anos 60 e é sobre dois amigos, Withnail e "I" (o nome dele nunca é dito no filme), que são atores, alcóolatras e dividem um apartamento. O filme mostra os dois indo passar um feriado em uma casa de campo, para achar algum rumo na vida e tentar recuperar a relação difícil dos dois. É uma comédia.
 O filme tem momentos divertidos, momentos questionáveis e talvez um dos momentos mais tristes que eu já vi em um filme. Eu lembro que me fez pensar: "eu senti todas as emoções com isso, mas... foi bom?", e eu fiquei voltando nesse filme várias vezes tentando decidir. Eu também descobri que é um filme cult para os ingleses, que repetem as falas e fazem jogos para beber junto com os personagens enquanto assistem. O filme trata de temas como fim do idealismo de uma geração, amadurecimento e amizades complicadas; e tudo é tão engraçado quanto é trágico. Enfim, ficar na sua cabeça por meses é provavelmente a melhor coisa que uma obra pode fazer.

 Fallen Angels (1995), de Wong Kar-Wai
 Eu já tinha visto Chungking Express do Kar-Wai, que eu amei, mas demorei mais de um ano para ver Fallen Angels. As histórias de Fallen Angels eram, originalmente, parte de Chungking, mas como elas eram mais pesadas que as outras, acabaram sendo cortadas e desenvolvidas nesse filme. A primeira parte conta a história de um assassino e sua parceira de crime, por quem ele é apaixonado; e a segunda é sobre um delinquente que vive de invadir lojas vazias á noite.
 O filme lida com temas como a solidão e alienação em uma cidade grande e o desejo por conexão. Ele também é mais noturno, caótico e violento que Chungking, apesar de também ter seus momentos de leveza, sobretudo na segunda história. Em alguns momentos, as duas histórias se entrelaçam, com um final que une as duas. A beleza das imagens e do roteiro desse filme é indescritível, e o monólogo do Ho Chi-Mo sobre vídeos e fotos e a morte do pai me fez refletir que eu deveria fotografar mais o meu. Enfim, se você for ver esse filme: veja de noite. É sério.

 But I'm a Cheerleader (1999), de Jamie Babbit
 Esse é um filme que me divertiu e me emocionou, inesperadamente. Ele conta a história de Megan, uma garota que é líder de torcida, vai pra igreja, tira boas notas... e que é mandada para um "acampamento de reorientação sexual" por causa de "comportamentos lésbicos", como ser vegetariana, não gostar de beijar o namorado e ter um pôster da Melissa Etheridge. Lá, durante o programa, ela conhece os outros participantes e começa a se entender quanto aos próprios sentimentos e sexualidade. É uma sátira/comédia romântica.
 O estilo lembra um pouco os filmes do John Waters, com uma aura camp, atuações cômicas e as cores gritantes, sobretudo o azul e o rosa nas paredes da casa, nas roupas, na decoração... Tudo no acampamento parece muito absurdo e artificial, como é a própria situação dos personagens tentando se adequar aos papéis de homens/mulheres ideais do programa. O filme consegue ser crítico e divertido ao mesmo tempo, e tem um romance muito bem escrito... me fez entender por quê algumas pessoas gostam de comédias românticas.

 Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo (2022), dos Daniels
 Eu estava ansiosa para ver esse filme desde o anúncio dele, mas eu demorei pra ver depois do lançamento; esse também é o único filme lançado em 2022 na lista de 2022 (porque eu não vi muitos filmes novos mesmo). O filme conta a história de uma família que se vê envolvida em uma ruptura interdimensional, e a mãe, Evelyn, é escolhida para tentar consertar tudo. Essa é uma sinopse ruim, mas é impossível abordar tudo que esse filme é em poucas palavras, de verdade. É de ação e ficção científica.
 A experiência de ver o filme foi muito boa; eu me senti totalmente submersa no universo dele e nos acontecimentos... eu não vi a hora passar. A trama envolve um multiverso, e essa parte científica é muito interessante, assim como o modo que os universos são retratados na tela; a edição é maximalista e insanamente boa. As reflexões sobre relações familiares, sentido da vida, vazio e completude também são muito interessantes, e é um filme extremamente filosófico nesse sentido. Além disso, o elenco é maravilhoso e dá para sentir a sintonia entre todos na tela. Ainda pensando na oposição entre o bagel e o olho.

  Persona (1966), do Ingmar Bergman
 O Bergman é um dos diretores mais influentes do cinema, e ele é muito citado em um livro que eu li sobre roteiros (Story, do Robert McKee). O filme é sobre uma enfermeira que é escolhida para cuidar de uma atriz que teve um surto e parou de falar; as duas ficam reclusas em uma casa, onde elas entram em um embate, ao mesmo tempo que elas começam a se unir psicologicamente (...talvez).
 Esse é um filme muito misterioso e intrigante; o roteiro é denso e muito silencioso, pois só uma das personagens fala (na maior parte do filme). Também é uma fonte interminável de teorias sobre o que realmente aconteceu nesses 85 minutos: enquanto eu assistia, eu achei que elas eram a mesma pessoa; no final, que não eram a mesma pessoa; e algumas pessoas acham que é sobre vampirismo. É um filme aberto para todas essas interpretações. As duas atrizes são hipnóticas, e as cenas passam uma sensação onírica, onde real e imaginário, físico e psicológico parecem não ter fronteiras exatas.